quinta-feira, 6 de maio de 2010

Renasce a Rosa de Sangue de Lula Côrtes

Finalmente! Relançado um dos mais cultuados e raros álbuns da música underground produzida no Brasil: o LP Rosa de Sangue, do multifacetado artista pernambucano Lula Côrtes. Com uma tiragem limitada a apenas 500 cópias, essa esmeradíssima reedição estadunidense, em LP de vinil de 180 gramas e CD, foi merecidamente (re)alçado do limbo mítico das lendas-raridades. A edição em LP reproduz toda a parte gráfica do original, trazendo o duplo encarte em papel couchê com as letras e a ficha técnica, o selo Mocambo e inclui, ainda, um encarte em inglês com texto escrito pelo próprio músico.

Diferente do que se poderia esperar de um disco gravado nem 1980, esse é um exemplo incrivelmente tardio, mas extremamente significativo e emblemático, da contracultura brasileira e diretamente influenciado pela vertente musical da Psicodelia e do Tropicalismo. Como característica destes, o disco traz uma mescla de influências e estilos, fazendo uso de influências as mais diversas: da música nordestina – forró e frevo – ao rock psicodélico, da poesia viajante, tipicamente hippie, a tonalidades folky. Cercando-se dos seus companheiros da cena udigrudi pernambucana, Lula contou com o auxílio mais-que-luxuoso de nomes como Jarbas Mariz, Alceu Valença, Paulo Rafael, Zé da Flauta, Don Tronxo, Ricardo Uchoa, Cátia de França e outros, transformando essa obra em um clássico da rock brasileiro.

As diversidades estilísticas vêm à tona durante toda a audição, mas destaco apenas algumas, como a mística Bahjan – Oração para Shiva, que mostra uma ambiência hindu-religiosa com inebriante vocal feminino, de Ratnabali. A faixa conta ainda com Lula, nas tablas e tricórdio acústico e Zé da Flauta, na flauta, óbvio, remetendo a lendários progressivos alemães, como o Popol Vuh, em seus discos com a participação da cantora Djong Yun, Ash Ra Tempel e outros. A instrumental Nordeste Oriental é puramente Música Armorial, movimento de valorização da cultura nordestino-brasileira, lançado por Ariano Suassuna em 1970. Já Noite Preta é um inacreditavelmente enlouquecido swing – ou samba-rock, como preferem alguns – up-tempo carregado de guitarras fuzz e seguindo os genitores do estilo, o Trio Mocotó, mas acrescentando um groove de disco music poderoso. Em Dos Inimigos Lula consegue a proeza de fazer uma balada deliciosamente bluesy mas com toques hard (?!), deixando livre uma soberba guitarra que plana em voo contínuo e magnífico. Balada da Calma, guitarras fuzz sempre presente, é daquelas músicas com melodia tão bela e envolvente que dá vontade de ouvir e ouvir e ouvir e ouvir uma vez mais. Sensação que continua em Balada de Sangue, um breve tema instrumental que encerra o LP em um clima folk elétrico altamente progressivo e climático. Uma pena acabar. Esse merecia ser um álbum-duplo...

(Publicada originalmente em 2009)

O Sebbo que soa

Surpreendente. Essa foi minha reação quando escutei o CD Por que não sabíamos voar (2008), do quinteto O Sebbo. Formado em Curitiba em outubro de 2001, conta em sua formação atual com Rafael Marchiorato (órgão Hammond, piano, piano Fender Rhodes, sintetizadores e vocal), Margareth Blaskievicz (vocal e percussão), Geison Budel (baixo e violão de 12 cordas), Hermann Ruthes (guitarra e vocal) e Marcelo Guedes (bateria).

Na maior parte das faixas apresentam um hard rock progressivo, bastante elaborado e com uma forte pegada, mas demonstrando uma valorização da música brasileira, o que sempre foi uma característica do progressivo nacional, principalmente durante a década de 1970. O acento setentista é sempre nítido e parece caracterizar o repertório e as intenções estilísticas. Destaco no trabalho instrumental as passagens de órgão Hammond B4, os solos e riffs de guitarra, a pulsante e segura dupla baixo-bateria, o trabalho de percussão e os vocais feminino e masculinos, tudo sempre com um som “sujo”, no melhor sentido, o que é uma outra grande característica do bom rock dos anos 70.

Faixas como Leme do Som, Flocos Leves de Arroz, 1º de Outubro (essa com uma bela levada instrumental pinkfloydiana), Vozes Distantes e Mundo de Fantasia trazem influências marcantes de ícones clássicos do rock brasileiro em seus momentos mais progressivos e pesados, como O Terço, Mutantes, Casa das Máquinas, A Bolha, Pholhas, Recordando o Vale das Maçãs entre outros, tanto nos arranjos quanto na poética. O mesmo ocorre na bela e lúdica De Fato, dessa vez mostrando forte influência dos Secos & Molhados em seus melhores momentos. Já em O Sol Vai Brilhar, Tempo ao Tempo, Um Sonho e Nada Mais revelam o lado mais heavy do grupo, mesclando toques de hard blues. Em Não Brinque Comigo eles fazem um rock à la Allman Brothers, porém, com uma levada fortemente funky. Degrau é um folk elétrico de tonalidades psicodélicas e progressivas, com um toque épico, em andamento downtempo e com uma bela passagem orquestral. O CD encerra lá em cima com a pancadaria latina de Feitiço, que poderia ter sido tirada de um Santana em sua melhor fase fusion-progressiva, em discos como Caravanserai e Borboleta.

A despeito do nome do CD, O Sebbo voa, sim. Voa alto e soa bem.

Abram as asas e alcancem uma cópia. Abraçonoros e até a próxima decolagem.

(Publicada originalmente em 2009)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A Miragem d’Os Lobos


O enfoque de hoje vai para um grupo de conterrâneos: a lendária banda Os Lobos. Formada em Niterói em 1964, teve sua vida artística mais dedicada às apresentações ao vivo – em bailes, clubes, programas de rádio e TVs – do que às escassas e espaçadas gravações em todos os seus anos de atividades.

Falo aqui apenas sobre o que é considerado seu melhor e mais importante trabalho, o LP Miragem. Único lançado durante sua fase áurea, foi editado pelo selo Top Tape sob o número de série TT-0002 em 1971. É um excelente disco, tendo características marcantes dos anos da Psicodelia e cujo som é uma mescla de estilos bem a caráter do gênero. Apresenta faixas mais voltadas para um rock psicodélico carregado de humor e deboche, tanto nas letras quanto nas músicas, como nas faixas Seu Lôbo (sic), You e Pasta de Dentes Sabor Chicletes. Nestas, eles demonstram claramente seu lado mais influenciado pelos Mutantes da fase inicial, o que, convenhamos, não é de modo algum um demérito. O Homem de Neanderthall e Meu Amor por Cristina são mais pesadas, arrastadas, onde o grupo demonstra sua influência mais black, em acentos e vocais soul-psicodélicos. Baladas folk com tinturas e temáticas hippies, assim são Santa Teresa, Dorotéia, a linda e melódica Avenida Central e a bela e viajante faixa título. Os arranjos são sempre criativos e trazem um quê de sofisticação, mesclando detalhes característicos como guitarras distorcidas, vocais femininos e masculinos com efeitos, órgão, pianos, violões, naipe de violinos etc.

Vale citar a que completam a discografia do grupo: LP Os Lobos (Niterói Discos, 91); LP O Espigão, trilha sonora da novela (Som Livre, 74): faixa Na Sombra da Amendoeira; LP As 12 Finalistas do VII FIC (Fase Nacional) (Som Livre, 72): faixas Eu Sou Eu, Nicuri é o Diabo e Let Me Sing, Let Me Sing; compacto Cabine Classe "A" / Fanny (Savoya); compacto Só Vejo Você / Cristina (Savoya); compacto Avenida Central / Santa Teresa (Top Tape, 71 – retiradas do LP Miragem); compacto Momentos do VII FIC (Som Livre, 72): faixa Pente, creditada a Claudio Ornellas e Os Lobos; compacto Você Precisa Acordar / Jogo de Amor (CBS, 75).

Para os pesquisadores, uma dica: o livro Liverpool – Cantareira: Rota do Rock traz fotos raras e detalhes sobre o grupo, além de dezenas de outros de Niterói.

Abraçonoros e até a próxima viagem!

(Publicada originalmente em 2009)

bonequinho é uma banda?

Há algum tempo chegaram às minhas mãos dois CD-Rs do grupo paulista, de Bauru, bonequinho: Alien Totem e Gottanz – Volume I. Fiquei imediatamente chapado quando os escutei! Poucas vezes ouvi grupos brasileiros fazendo um rock tão visceral, underground e experimental, com influências – ou semelhanças – tão importantes e variadas.

Com total liberdade criativa, eles conseguiram produzir um estilo em que transitam do rock alemão eletrônico setentista de K(C)luster e Neu a King Crimson, Frank Zappa, Magma (e Zeül Music em geral); de Hawkwind aos punk psicodélicos japoneses dos anos 80 e 90; da brutalidade noise industrial à eletrônica hipnótica e uma tonelada de outras influências punk, heavy, concretistas etc. As faixas são quase sempre bastante longas, carregadas de experimentalismos e improvisações. A discografia deles é composta pelos CDs Pre-Post (1993-2000), Vinil/Nihil (1998-2001), Desarte (2003), Alien Totem (2006), Mimeto Pascal EP (2006) e Gottanz (Volume 1) (2007), além várias fitas de áudio e de vídeo. Toda sua produção é editada pelo selo Platonic(a)Music(a), do próprio grupo, sempre em tiragens mínimas e não distribuídas comercialmente. Gottanz (Volume 1), por exemplo, foi lançado em uma tiragem limitada a 77 cópias feitas artesanalmente.

O grupo pode ser achado em vários endereços Internet afora, onde todo o material é disponibilizado livremente. Anote: www.bonequinhologia.blogspot.com, www.tramavirtual.com.br/bonequinho, www.orkut.com/Community.aspx?cmm=8281117, www.myspace.com/bonequinho e museudofuturo@gmail.com.

Coerentes em sua linha de anarcopensamento, eles intitularam a comunidade que mantém no Orkut de bonequinho é uma banda? Aproveito a deixa e digo: sim, bonequinho é uma banda! Uma banda com som e postura instigantes, agressivos e provocativos, sem meio-termo, sem concessões. Se você não recua diante desse tipo de experimentação sonora/sensorial, deixo o convite: corra atrás, descubra, abra a cabeça e aumente o som, ou vice-versa.

Até a próxima!

(Publicada originalmente em 2008)

Kengo: Opus único

Esta coluna é dedicada ao LP Op. I, único lançamento do grupo Kengo.

Formado no interior de São Paulo, tinha como membros João Carlos Petoilho, o Petô (violão, voz, coro, baixo elétrico e percussão), Thebano Emílio (violão, violão com vara, voz e percussão) e Helton Barros (violão, vocal e baixo acústico).

De característica essencialmente acústica, o disco soa extemporâneo, algo como uma MPB produzida em algum estúdio underground, mezzo início dos anos 1970, mezzo início dos 80. Só que, surpreendentemente, foi gravado e editado em 93, com uma prensagem independente limitada a apenas mil cópias. Op. I apresenta uma linha estilística coerente: as dramáticas e apocalípticas Mãos, Arautos, Dias e Sonhos, Construtores e Piratas, trilham a linha folk-progressiva com forte acento MPB, bastante semelhante ao estilo d’A Barca do Sol – grupo que, particularmente, considero um clássico absoluto do rock progressivo brasileiro. Por sua vez, Normalmente, Pessoas, Opressão e Tarde de Chuva passam pela MPB independente dos anos 80, com baladas de sonoridade e poética nitidamente pós-hippie e pé-na-estrada. Por fim, flertaram com a MPB experimental da Vanguarda Paulistana dos anos 80, via Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção na jazzística, teatral e humoresca Latrocínio – um poema jazz. Os arranjos instrumentais são elaborados e instigantes, indo da suavidade e delicadeza folk a idéias tipicamente progressivas, com leves toques experimentalistas. Os vocais, por vezes rascantes e ásperos, causam sempre uma certa estranheza, até mesmo para ouvidos iniciados e acostumados a esquisitices musicais.

Após o óbvio insucesso do disco junto às media onde ele foi divulgado e movido a conseqüentes divergências internas o Kengo se dissolve. Seus integrantes passam a se dedicar apenas às suas atividades profissionais, fazendo música eventualmente e de forma particular. O LP, nunca distribuído comercialmente, torna-se mais uma das raras pérolas perdidas na música produzida no Brasil.

Em 2004 Petô produz uma versão caseira do disco, intitulada Op. II, adicionando intervenções eletrônico-experimentais, inserindo a inédita Baleias Azuis e acrescentando modificações às faixas Arautos, Construtores e Piratas.

Até a próxima coluna, com mais uma surpresa sonora.

(Publicada originalmente em 2008)

Do gélido underground siberiano emergem punks psicodélicos



Pois é... Quem pensa que a Sibéria é só uma terra friorenta, coberta de gelo a maior parte do ano e, outrora, local preferido para a instalação dos campos de concentração stalinistas, está redondamente enganado e precisando de uma atualização. Lá também é o berço de belas e estranhas obscuridades sonoras. Assim sendo, vou enfocar aqui três discos vindos daquelas paragens.

Do grupo Yegor i Opizdenevshie tenho em mãos duas raridades, seus dois primeiros discos: Pryg skok - detskie pecenki (CD em uma edição austríaca de 1990 (BSA OM 02-039), limitada a 300 copias) e o álbum duplo (2 LPs) Sto let odinotchestva (100 years solitude) (Grob Records/Zolotaia Dolina ZD003), de 92. Em ambos, o som desses malucos pode ser comparado a uma estranhíssima e saborosa fusão de estilos como a música cósmica de tendência alemã do grupo sueco de The Spacious Minds, com a elaboração e sofisticação punk experimental do Public Image Limited inicial, das Mercenárias (em seu LP Trashland, de 88) e dos gaúchos do Colarinhos Caóticos, em seu LP Introdução, também de 88, tudo isso entremeado a fortes influências de folk ácido psicodélico absolutamente setentista. O grupo lançou ainda um terceiro e último disco, Psychedelia Tomorrow, em 93. Formado por Yegor Letov em 90, teve como membros Konstantin Rjabinov, Igor Igor Jevtum, Alexander Rojkov, Julia Sherstobitova e Anna Volkova.

Originária da cidade de Novosibirsk, temos a cantora Yanka Dyagileva com seu último LP-solo, Styd i sram (Shame and reproach) (Grob Records/Zolotaia Dolina ZD004), lançado em tiragem limitada de apenas 1000 copias após o falecimento dela em 1991 – seu corpo foi encontrado em um rio perto de sua residência depois de nove dias de desaparecimento e, provável, suicídio. O estilo é um folk acido underground experimental e bastante instigante, mesclando violões acústicos com guitarras pesadas, vocais femininos, em russo, que vão de uma bela suavidade lírico-progressiva a uma elaborada aspereza soft punk e toques de musica cósmica neo-psicodélica. Participam como grupo de apoio os músicos Yegor Letov (guitarras, baixo e produção), Igor Jevtum (guitarras) e Anna Volkova (vocal), membros do Yegor i Opizdenevshie. O LP é uma variação do álbum anterior Yanka & Grazhdanskaya Oborona live in MEI, de 90, contendo versões modificadas e remasterizadas, com uma orientação mais elétrica e menos acústica, de gravações feitas entre 1988 e 1991.

Do svidanyia, tovarishy! (Nota do tradutor: até logo, camaradas!).

(Publicada originalmente em 2007)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Peyote e Espinha de Peixe: progressivos dos anos 2000

A música feita no Brasil é uma eterna fonte de ótimas surpresas para todo pesquisador e colecionador de discos, de quaisquer estilos, uma verdadeira Cornucópia de bons sons. Exemplos disso são os CDs lançados por dois grupos no início dos anos 2000, o Peyote e o Espinha de Peixe.

Surgido em Niterói, RJ, o trio Espinha de Peixe, formado por João (voz e violão de 12 cordas), Pardal (voz e violão) e Moreira (flauta, voz e gaita), além de diversos convidados, editou seu único e homônimo CD em 2001, de forma independente, em uma tiragem de pouquíssimas cópias, nunca comercializadas. Fazendo uma fusão de inspiração setentista, mesclam o rock progressivo com a MPB e soam como uma combinação bastante interessante de Alceu Valença, os folk-hippies-ácidos nordestinos dos anos 70 e o Jethro Tull, ícone do blues-progressivo britânico. O som é fortemente marcado pela utilização de flautas, guitarras pesadas, violões folk e uma bateria poderosa. Dentre as 10 faixas do CD, destaco as belas Cavalos de areia, O trem, Menina, Reflexos, Fogo (instrumental), Peixe-boi e Verticalizar, que sintetizam toda sua proposta musical.

O Peyote, surgido em Belo Horizonte em meados de 1997, lançou seu único CD, Abstrato, também de modo independente, em 2002, com uma tiragem de apenas 500 cópias. Nesse excepcional CD-EP o grupo também nos traz um rock progressivo com toques de MPB, acrescido de influências do psicodelismo e do hard rock, nas cinco e bastante elaboradas faixas que o compõem: Cerimonia do peyote, Semente de cactus, Glorias, O baile e Boemia. Destaque para as guitarras (com pedais wah-wah inclusive) de Rodrigo Ferreira e Henrique Porfírio e as flautas de Pedro Ladeira (também nos vocais). Integravam o grupo, ainda, Frederico Abreu (bateria) e Dauler Gomes (baixo). Para completar a qualidade do trabalho, uma belíssima capa digipack de tonalidades e inspiração psicodélicas, acompanhada de um livreto de 12 paginas com as letras e textos inspirados no livro Mandala, de Roger Hein. Eles continuam gravando esporadicamente e duas de suas novas músicas, Bambu oco e Extremos, seguem o estilo do CD, mas com um pouco mais de peso nas guitarras, e com os novos integrantes Alexandre Arnoni (bateria), Fernando (baixo) e Léo Dias (vocal). Como detalhe, o disco teve uma prensagem em 2004, encartado na revista norte-americana While you were sleeping, quando Rodrigo fazia seus
estudos de guitarra nos EUA.

Até a próxima. E som na caixa!

(Publicada originalmente em 2007)